Quando um empresário cria uma unidade produtiva (seja ela uma loja, uma planta industrial, um centro de logística ou outra forma qualquer) surge, sob a ótica do direito, um estabelecimento empresarial. Este estabelecimento é um objeto de direito, uma universidade formada por elementos materiais e imateriais, e pode ser objeto de transferência. Como esta transferência está sujeita a regras especiais, a ela se dá o nome de trespasse.
No Brasil, as regras que cuidam do trespasse podem ser encontradas no Código Civil, a partir do artigo 1.144. E estas normas são o oposto do que deveriam ser. Enquanto em todo o mundo a operação de trespasse é facilitada e estimulada (ela é vista como um mecanismo de preservação da empresa, na medida em que é opção muito mais vantajosa do que o simples encerramento da unidade empresarial), em nosso país o contrato é visto unicamente como meio de cometimento de fraudes. E, debaixo desta visão, construiu-se um conjunto de normas que elevam os riscos e os custos assumidos pelo comprador a um ponto tal que um empresário consciente destas regras muito dificilmente comprará um estabelecimento.
Destas normas, destacam-se os artigos 1.145 e 1.146. Este prevê que o adquirente assume a responsabilidade pelo pagamento das dívidas contabilizadas pelo vendedor. Aquele autoriza ao juiz a declarar a ineficácia da transferência sempre que se presumir a ocorrência de algum prejuízo a credor do vendedor (mesmo que este credor desconhecido do comprador, por não constar da contabilidade). E de nada adianta alegar, ou mesmo demonstrar, a boa-fé do adquirente. Para o legislador brasileiro, quem compra um estabelecimento está auxiliando o vendedor a enganar a seus credores, e ponto final.
Já tivemos a oportunidade de escrever antes, nesta mesma coluna, a respeito da impropriedade lógica destas normas. Hoje, sua invocação era necessária apenas para contextualizar outro problema: a possibilidade de alguém imaginar a extensão deste regime jurídico a outras operações que não se enquadrem como um trespasse de estabelecimento.
A situação que mais chama a atenção é a de empresas em que o principal valor é a marca estampada em seus produtos. Quando uma empresa fabrica um bem de consumo em sua planta industrial, e agrega valor a seu produto por meio da aplicação de sua marca, não há dificuldade em perceber que uma transferência não-societária desta unidade empresarial será qualificada como um trespasse de estabelecimento.
Mas há casos em que a marca é comercialmente explorada sem que a fabricação dos bens de consumo seja feita pelo empresário que a criou. Aliás, há situações em que um empresário atua contratando outros empresários para fabricar seus produtos, apenas gerindo a aplicação de sua marca e a distribuição para o mercado. Um exemplo: a Galanz é uma empresa chinesa que fabrica 40% dos fornos de microondas comercializados no mundo, mas pouco estampa sua marca nos fornos que saem de sua linha de produção. Empresas localizadas ao redor do mundo contratam com a Galanz o fornecimento destes e de outros bens, já com a marca local estampada. Alguém poderia montar uma estrutura empresarial em que a empresa chinesa fosse contratada para produzir 100% dos bens oferecidos ao mercado, gerindo apenas este contrato de fornecimento, a aplicação da marca, a agregação de valor à marca por meio de estratégias de marketing e a distribuição dos produtos ao mercado. De um escritório, com alguns funcionários administrativos, pode-se criar o que o mercado vê como uma grande fábrica de fornos de microondas.
É natural que, ao longo do tempo, esta marca adquira um belo valor de mercado, e que haja uma oferta de compra por outro empresário. Mas este empresário interessado na aquisição não tem interesse na estrutura administrativa e na rede de contratos criada. Ele quer a marca. E, negociado o preço, ele adquire a marca.
Esta operação poderia ser considerada um trespasse de estabelecimento? Se aplicarmos os fundamentos jurídicos que regulam a matéria, a resposta seria negativa. Um estabelecimento é essencialmente uma universalidade, que não se confunde com qualquer de seus elementos. Ou seja: não há estabelecimento constituído por apenas um elemento (no caso, somente pela marca). E, diante desta percepção, o regime jurídico seria o da cessão de marca, sem que se possa cogitar a aplicação das regras do Código Civil (em especial dos arts. 1.145 e 1.146).
Mas, como no Brasil nada é tão simples, os empresários envolvidos em operações assemelhadas à descrita não podem deixar de considerar o risco de aplicação do regime do trespasse. E a única razão para isso é um histórico de decisões, algumas dos tribunais superiores, equiparando a transferência de direito de uso de linhas telefônicas (naquele tempo em que elas valiam, e não valiam pouco) a um trespasse de estabelecimento. Fundamento jurídico para esta equiparação não havia. Mas as decisões estão aí, e podem ser ressuscitadas por aqueles que acreditam na fantasia de que o mercado é construído de golpe em golpe.(Fonte: Conjur)
No Brasil, as regras que cuidam do trespasse podem ser encontradas no Código Civil, a partir do artigo 1.144. E estas normas são o oposto do que deveriam ser. Enquanto em todo o mundo a operação de trespasse é facilitada e estimulada (ela é vista como um mecanismo de preservação da empresa, na medida em que é opção muito mais vantajosa do que o simples encerramento da unidade empresarial), em nosso país o contrato é visto unicamente como meio de cometimento de fraudes. E, debaixo desta visão, construiu-se um conjunto de normas que elevam os riscos e os custos assumidos pelo comprador a um ponto tal que um empresário consciente destas regras muito dificilmente comprará um estabelecimento.
Destas normas, destacam-se os artigos 1.145 e 1.146. Este prevê que o adquirente assume a responsabilidade pelo pagamento das dívidas contabilizadas pelo vendedor. Aquele autoriza ao juiz a declarar a ineficácia da transferência sempre que se presumir a ocorrência de algum prejuízo a credor do vendedor (mesmo que este credor desconhecido do comprador, por não constar da contabilidade). E de nada adianta alegar, ou mesmo demonstrar, a boa-fé do adquirente. Para o legislador brasileiro, quem compra um estabelecimento está auxiliando o vendedor a enganar a seus credores, e ponto final.
Já tivemos a oportunidade de escrever antes, nesta mesma coluna, a respeito da impropriedade lógica destas normas. Hoje, sua invocação era necessária apenas para contextualizar outro problema: a possibilidade de alguém imaginar a extensão deste regime jurídico a outras operações que não se enquadrem como um trespasse de estabelecimento.
A situação que mais chama a atenção é a de empresas em que o principal valor é a marca estampada em seus produtos. Quando uma empresa fabrica um bem de consumo em sua planta industrial, e agrega valor a seu produto por meio da aplicação de sua marca, não há dificuldade em perceber que uma transferência não-societária desta unidade empresarial será qualificada como um trespasse de estabelecimento.
Mas há casos em que a marca é comercialmente explorada sem que a fabricação dos bens de consumo seja feita pelo empresário que a criou. Aliás, há situações em que um empresário atua contratando outros empresários para fabricar seus produtos, apenas gerindo a aplicação de sua marca e a distribuição para o mercado. Um exemplo: a Galanz é uma empresa chinesa que fabrica 40% dos fornos de microondas comercializados no mundo, mas pouco estampa sua marca nos fornos que saem de sua linha de produção. Empresas localizadas ao redor do mundo contratam com a Galanz o fornecimento destes e de outros bens, já com a marca local estampada. Alguém poderia montar uma estrutura empresarial em que a empresa chinesa fosse contratada para produzir 100% dos bens oferecidos ao mercado, gerindo apenas este contrato de fornecimento, a aplicação da marca, a agregação de valor à marca por meio de estratégias de marketing e a distribuição dos produtos ao mercado. De um escritório, com alguns funcionários administrativos, pode-se criar o que o mercado vê como uma grande fábrica de fornos de microondas.
É natural que, ao longo do tempo, esta marca adquira um belo valor de mercado, e que haja uma oferta de compra por outro empresário. Mas este empresário interessado na aquisição não tem interesse na estrutura administrativa e na rede de contratos criada. Ele quer a marca. E, negociado o preço, ele adquire a marca.
Esta operação poderia ser considerada um trespasse de estabelecimento? Se aplicarmos os fundamentos jurídicos que regulam a matéria, a resposta seria negativa. Um estabelecimento é essencialmente uma universalidade, que não se confunde com qualquer de seus elementos. Ou seja: não há estabelecimento constituído por apenas um elemento (no caso, somente pela marca). E, diante desta percepção, o regime jurídico seria o da cessão de marca, sem que se possa cogitar a aplicação das regras do Código Civil (em especial dos arts. 1.145 e 1.146).
Mas, como no Brasil nada é tão simples, os empresários envolvidos em operações assemelhadas à descrita não podem deixar de considerar o risco de aplicação do regime do trespasse. E a única razão para isso é um histórico de decisões, algumas dos tribunais superiores, equiparando a transferência de direito de uso de linhas telefônicas (naquele tempo em que elas valiam, e não valiam pouco) a um trespasse de estabelecimento. Fundamento jurídico para esta equiparação não havia. Mas as decisões estão aí, e podem ser ressuscitadas por aqueles que acreditam na fantasia de que o mercado é construído de golpe em golpe.(Fonte: Conjur)
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